Com o advento da Lei nº 11.277/2006, que acrescentou o art. 285-A ao CPC de 1973, o sistema processual permitiu que as matérias de direito, repetitivas em determinados juízos ou tribunais, fossem julgadas improcedentes sem a prévia citação do réu. O comando era o seguinte:
Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.
O dispositivo visou dar efetividade à garantia fundamental à “razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (CR, art. 5º, LXXVIII). No entanto, em que pese a importância de seu objetivo, o art. 285-A do CPC de 1973 era demasiadamente amplo, porquanto não possuía limitação de matéria nem condicionava a decisão ao entendimento predominante nos tribunais superiores (STJ e STF). Como visto, era possível o julgamento de improcedência se apenas no juízo no qual tramitava a ação já existisse sentença de improcedência em casos idênticos.
No CPC/2015 verifica-se a ampliação das possibilidades de improcedência liminar, e, ao que nos parece, um direcionamento da posição dos julgadores aos entendimentos consolidados nos tribunais superiores. Contudo, não há mais possibilidade de improcedência liminar quando a tese ventilada estiver consolidada exclusivamente no âmbito do tribunal local, tal como previsto no art. 285-A do CPC anterior. Assim, diferentemente do tratamento conferido pelo CPC/1973, não mais se admite, no Código atual, o julgamento de improcedência liminar do pedido com base no entendimento firmado pelo juízo em que tramita o processo sobre a questão repetitiva, exigindo-se, para aplicação do art. 332, que tenha havido prévia pacificação do tema no âmbito dos tribunais superiores, materializada em súmulas ou teses em recursos repetitivos, ou em julgamento proferido por tribunais em sede de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas ou de Assunção de Competência (IRDR ou IAC)[1].
Vejamos cada uma das hipóteses apresentadas pelo art. 332.
a) Pedido contrário à súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça ou a acórdão proferido por estes tribunais em julgamento de recursos repetitivos (art. 332, I e II)
Sem dúvida alguma, um dos grandes objetivos do CPC/2015 é alinhar a jurisprudência nacional e garantir tratamento isonômico para situações jurídicas idênticas. A função jurisdicional não pode ser equiparada a um jogo de loteria, ao ponto de condicionar o sucesso (ou insucesso) de uma demanda à distribuição do processo para este ou aquele órgão julgador. Isso não quer dizer que as interpretações não possam ser revistas ou alteradas. O que não se concebe é um Poder Judiciário que não garanta a mínima previsibilidade e estabilidade das decisões e das relações sociais.
Partindo dessa premissa, os incisos I e II do art. 332 possibilitam que o magistrado, nas causas que dispensem a fase instrutória, julgue liminarmente improcedente pedido do autor que contrarie súmula ou acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça. Nesse último caso, o acórdão deve ter sido proferido na forma dos arts. 1.036 a 1.041 do CPC/2015, ou seja, o recurso deve ter sido realizado segundo a técnica dos recursos repetitivos.
O julgamento liminar de improcedência fundamentado nesses dispositivos objetiva reduzir o percentual de recursos especiais e extraordinários para discussão de questões já pacificadas, que poderiam ter sido definitivamente decididas em instâncias ordinárias. Assim,
“[…] ainda que ‘julgue’ o juiz ser a orientação do tribunal injusta, ou que seja a lei injusta, não deve ele proferir uma decisão que sabe ou deva saber que será reformada em grau de recurso […]. Embora muitas vezes o ato de julgar contra a lei ou contra a orientação do STF possa materializar um verdadeiro sentimento de boas intenções por parte do juiz prolator da decisão, é certo que os danos causados por milhares de sentenças ou acórdãos em desconformidade com a orientação jurisprudencial das cortes supremas são gigantescos, pois essas sentenças e acórdãos abarrotam o STF e os tribunais superiores, tornando a Justiça mais lenta e reduzindo drasticamente a qualidade da prestação jurisdicional”.[2]
Vale ressaltar que a orientação consolidada do STF ou do STJ deve ser aplicada com cautela, somente quando não houver nenhuma prova a ser produzida além daquela já constante dos autos. Também nos casos em que houver divergência entre a jurisprudência do STJ e do STF – o que não é incomum acontecer –, deve o magistrado dar prosseguimento ao feito até que se uniformizem os entendimentos, sem prejuízo do julgamento do pedido conforme o seu livre convencimento caso o conflito não seja solucionado a tempo.
Importa lembrar que o juiz não está autorizado a julgar liminarmente procedente o pedido, mesmo que este esteja de acordo com a jurisprudência dos tribunais superiores. É que os incisos do art. 332 abarcam apenas hipóteses de julgamento liminar de improcedência, não sendo permitida a sua aplicação para julgamento em sentido contrário. De toda sorte, além da existência de entendimentos perante os tribunais sobre o tema, é imprescindível a dispensa da fase instrutória para que seja viabilizada a decisão de improcedência[3].
b) Pedido contrário a entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência (art. 332, III)
O incidente de resolução de demandas repetitivas está previsto nos arts. 976 a 987. Em breve síntese, ele é um instrumento que tem por finalidade criar uma decisão paradigma, cuja tese jurídica deverá ser aplicada em todos os processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito.
O tema será tratado no Capítulo relativo aos processos perante os tribunais. Por enquanto, é necessário saber que esse incidente vinculará todos os processos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do tribunal para o qual ele foi suscitado. Por esta razão, os pedidos que contrariarem a tese jurídica adotada poderão ser julgados liminarmente improcedentes.
Também será possível aplicar este inciso quando o pedido contrariar decisão proferida em incidente de assunção de competência, sendo que nesta hipótese não haverá necessidade de repetição de diversos processos para se criar uma decisão paradigma. A assunção de competência (art. 947), antes prevista no art. 555, § 1º, do CPC de 1973,[4] permite que o relator submeta o julgamento de determinada causa ao órgão colegiado de maior abrangência dentro do tribunal, conforme dispuser o regimento interno. A causa deve envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, de forma a justificar a apreciação pela câmara ou turma do tribunal que estiver julgando a causa originariamente, em sede recursal ou em virtude de remessa necessária.
c) Pedido contrário a enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local (art. 332, IV)
Quando o pedido se fundar em normas presentes na legislação local, o magistrado poderá analisá-lo de acordo com o entendimento do tribunal ao qual se encontra vinculado.
Assim, se o pedido contrariar entendimento sumulado do respectivo tribunal, o juiz poderá extinguir o feito, com resolução do mérito, com fundamento da improcedência liminar do pedido.
Lembre-se que o entendimento deve estar relacionado à interpretação de direito local. Assim, um precedente isolado do tribunal local sobre lei federal não permitirá a incidência deste inciso, já que cabe ao STJ interpretar a legislação federal.
d) Decadência e prescrição (art. 332, § 1º)
Prescrição é a perda da pretensão à reparação de um direito violado, em razão da inércia do seu titular, durante o lapso temporal estipulado pela lei. A prescrição aniquila somente a pretensão, não alcançando o direito constitucional de ação. Passados seis meses a contar da data da apresentação, o cheque perde sua força executiva (art. 59 da Lei nº 7.357/1985). Em outras palavras, a pretensão executiva do beneficiário foi atingida pela prescrição. Nada obsta a que o titular do direito busque a satisfação de seu crédito por outras vias, como, por exemplo, por meio do procedimento monitório ou comum (arts. 61 e 62 da mesma lei).
Decadência é a perda do próprio direito pelo não exercício no prazo estabelecido pela lei. A decadência alcança o direito potestativo, que pode se referir ao direito material ou a um dado procedimento (direito à via do mandado de segurança, por exemplo).
O Código de 1973 disciplinava os institutos da decadência e da prescrição como hipóteses de indeferimento da petição inicial e consequente extinção do processo com resolução do mérito (art. 295, IV, c/c art. 269, IV, do CPC/1973). Eram os únicos motivos de indeferimento que levavam o juiz a proferir sentença que apreciasse o mérito da causa, já que as demais hipóteses do art. 295 permitiam apenas a extinção do processo sem resolução do mérito.
Esclarece-se que, como a prescrição e a decadência são matérias de ordem pública, podem ser reconhecidas mesmo depois de deferida a petição inicial e de ter sido citado o réu. Assim, não é coerente se falar em indeferimento, mas em acolhimento da objeção prevista no art. 269, IV (atual art. 487, II). No CPC/2015, a decadência e a prescrição são fatores que levam à improcedência liminar do pedido, ou seja, não se trata mais de indeferimento, mas de resolução liminar.
Há doutrinadores que sustentam a necessidade de se oportunizar a manifestação do réu para, somente empós, o juiz declarar o decurso do prazo prescricional. Isso se deve ao fato de que o réu pode renunciar a prescrição e, assim, permitir que a demanda prossiga mesmo quando extinto o prazo para o exercício da pretensão em juízo. Além disso, em razão da possibilidade de existirem causas interruptivas e suspensivas do prazo prescricional, é prudente que o magistrado somente extinga o feito quando não houver óbices à arguição da prescrição. Nesse sentido: STJ, REsp 1.005.209/RJ, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 08.04.2008.
O art. 487, parágrafo único, do CPC/2015 prevê que a prescrição e a decadência não serão reconhecidas sem que antes seja dada às partes a oportunidade de se manifestar. Apesar disso, o dispositivo excepciona a regra ao permitir o julgamento liminar de improcedência diante da ocorrência de prescrição, o que contraria o entendimento doutrinário anteriormente exposto.
Apesar disso, entendemos que sempre que possível deve o juiz oportunizar a manifestação das partes, exceto quando a existência da decadência ou a prescrição forem manifestas. Isso porque, segundo art. 10 do próprio Código, “o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.
“Esse texto foi extraído do Curso de Direito Processual Civil, de autoria de Elpídio Donizetti e publicado pela Editora GEN”.
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[1] O STJ abordou o tema recentemente, em decisão veiculada no Informativo 673, de 2020: “Na hipótese, a sentença e o acórdão recorrido concluíram ser possível o julgamento de improcedência liminar do pedido sob fundamento de que existiam causas repetitivas naquele mesmo juízo sobre a matéria, o que autorizaria a extinção prematura do processo com resolução de mérito. Todavia, diferentemente do tratamento dado à matéria no revogado CPC/1973, não mais se admite, no novo CPC, o julgamento de improcedência liminar do pedido com base no entendimento firmado pelo juízo em que tramita o processo sobre a questão repetitiva, exigindo-se, diferentemente, que tenha havido a prévia pacificação da questão jurídica controvertida no âmbito dos Tribunais, materializada em determinadas espécies de precedentes vinculantes, a saber: súmula do STF ou do STJ; súmula do TJ sobre direito local; tese firmada em recursos repetitivos, em incidente de resolução de demandas repetitivas ou em incidente de assunção de competência. Por limitar o pleno exercício de direitos fundamentais de índole processual, em especial o do contraditório e o da ampla defesa, é certo que a referida regra deve ser interpretada de modo restritivo, não se podendo dar a ela amplitude maior do que aquela textualmente indicada pelo legislador, razão pela qual se conclui que o acórdão recorrido violou o art. 332, III, do novo CPC, sobretudo porque é fato incontroverso que, no que tange ao tema, não há súmula ou tese firmadas em nenhuma das modalidades de precedentes anteriormente mencionadas. De igual modo, para que possa o juiz resolver o mérito liminarmente e em favor do réu, ou até mesmo para que haja o julgamento antecipado do mérito imediatamente após a citação do réu, é indispensável que a causa não demande ampla dilação probatória, o que não se coaduna com a ação civil pública em que se pretende discutir a ilegalidade de acolhimento institucional de menores por período acima do máximo legal e os eventuais danos morais que do acolhimento por longo período possam decorrer, pois são questões litigiosas de natureza estrutural. Os litígios de natureza estrutural, de que é exemplo a ação civil pública que versa sobre acolhimento institucional de menor por período acima do teto previsto em lei, ordinariamente revelam conflitos de natureza complexa, plurifatorial e policêntrica, insuscetíveis de solução adequada pelo processo civil clássico e tradicional, de índole essencialmente adversarial e individual. Conclui-se que também sob esse enfoque houve violação ao art. 332, caput e III, do novo CPC, na medida em que o julgamento de improcedência liminar do pedido (ou de julgamento antecipado do mérito) é, em regra, incompatível com os processos estruturais, ressalvada a possibilidade de já ter havido a prévia formação de precedente qualificado sobre o tema que inviabilize nova discussão da questão controvertida no âmbito do Poder Judiciário” (REsp 1.854.882/CE, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 02.06.2020, DJe 04.06.2020).
[2] DELGADO, José Augusto. A imprevisibilidade das decisões judiciárias e seus reflexos na segurança jurídica. Disponível em: <www.stj.jus.br/internet_docs/ministros/Discursos/0001105/A IMPREVISIBILIDADE DAS DECISÕES JUDICIÁRIAS E SEUS REFLEXOS NA SEGURANÇA JURÍDICA.doc>.
[3] “Para que seja possível a aplicação da técnica da improcedência liminar do pedido, mostra-se necessária a dispensa da fase instrutória e, ainda, a violação expressa a entendimentos repetitivos e sumulados pelos Tribunais Superiores, nos termos do art. 332 do CPC” (TJ-MG – AC: 10000210569992001 MG, Relator: Jaqueline Calábria Albuquerque, Data de Julgamento: 27/04/2021, Câmaras Cíveis, 10ª Câmara Cível, Data de Publicação: 05/05/2021)
[4] “Art. 555. No julgamento de apelação ou de agravo, a decisão será tomada, na câmara ou turma, pelo voto de 3 (três) juízes. § 1º Ocorrendo relevante questão de direito, que faça conveniente prevenir ou compor divergência entre câmaras ou turmas do tribunal, poderá o relator propor seja o recurso julgado pelo órgão colegiado que o regimento indicar; reconhecendo o interesse público na assunção de competência, esse órgão colegiado julgará o recurso”.