Na última semana o Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, apreciando o tema 309 da repercussão geral, dar provimento ao Recurso Extraordinário nº 656.558/SP, fixando as seguintes teses em relação ao tema “Improbidade Administrativa”:
a) O dolo é necessário para a configuração de qualquer ato de improbidade administrativa (art. 37, § 4º, da Constituição Federal), de modo que é inconstitucional a modalidade culposa de ato de improbidade administrativa prevista nos arts. 5º e 10 da Lei nº 8.429/92, em sua redação originária.
b) São constitucionais os arts. 13, V, e 25, II, da Lei nº 8.666/1993, desde que interpretados no sentido de que a contratação direta de serviços advocatícios pela Administração Pública, por inexigibilidade de licitação, além dos critérios já previstos expressamente (necessidade de procedimento administrativo formal; notória especialização profissional; natureza singular do serviço), deve observar: (i) inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público; e (ii) cobrança de preço compatível com a responsabilidade profissional exigida pelo caso, observado, também, o valor médio cobrado pelo escritório de advocacia contratado em situações similares anteriores.
Nesse espaço abordaremos a primeira tese, relacionada à exigência de dolo para a configuração de ato de improbidade administrativa. Em outro artigo sobre o tema[1], deixamos claro a diferença entre improbidade e ilegalidade. A existência de um ato ilegal não pressupõe necessariamente a caracterização de um ato improbo. Ilegalidades e práticas irregulares não denotam necessariamente aspectos de má intenção, que são característicos da improbidade administrativa e integram o próprio tipo improbo.
A exigência de intenção – e não meramente de culpa – foi incorporada à Lei de Improbidade somente com a edição da Lei 14.230/2021, que em seu artigo 1º, § 1º, definiu expressamente que os atos de improbidade administrativa são apenas as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11. Antes da Lei 14.230/2021, entendiam-se que o dolo era exigido para a configuração dos atos de improbidade previstos nos arts. 9º e 11, não sendo suficiente a culpa; e para a configuração dos atos de improbidade previstos no art. 10, era necessário o dolo ou, ao menos, a culpa.
A decisão proferida pelo STF no RE 656.558/SP tem relação, portanto, com a redação originária da Lei 8.429/1992, que ainda admitia a responsabilização por culpa, por exemplo, para os casos de dispensa indevida de licitação.
Para exemplificar, trazemos um caso vinculado ao nosso Escritório. Um determinado agente público foi responsabilizado por ato de improbidade administrativa pelo fato de ter admitido a venda de imóvel público por meio de hasta pública. O procedimento correto, de acordo com a legislação vigente no momento da autorização, era a concorrência. Ou seja, o agente público violou uma regra que previa determinada modalidade de licitação para a finalidade pretendida. No caso concreto não houve qualquer consequência patrimonial para a Administração Pública. Não foi adotado qualquer procedimento capaz de frustrar o caráter competitivo da licitação. Além disso, os arrematantes efetuaram regularmente o pagamento dos valores dos lances, os quais comprovadamente foram utilizados exclusivamente para atender ao interesse público. Em suma, houve, sim, erro na escolha da forma, mas a finalidade – atendimento ao interesse público – foi efetivamente atingida. Apesar disso houve condenação em primeiro grau e a necessidade de interposição de recurso de apelação, no qual felizmente obtivemos êxito[2].
Julgamentos como esse é que o Supremo Tribunal Federal pretende evitar. Falhas toleráveis ou meras irregularidades despidas de dolo ou má–fé não são suficientes para atrair a incidência das sanções previstas na Lei 8.429/1992. Nem depois da Lei 14.230/2021, nem para os casos em que houve aplicação da redação anterior.
Na prática, essa decisão reforça a necessidade de aplicação imediata das alterações promovidas pela Lei 14.230/2021 aos casos ainda não definitivamente julgados. Ou seja, gestores públicos que estão sendo processados por atos culposos em ações de improbidade administrativa devem exigir a aplicação do procedente vinculante do Supremo Tribunal Federal.
Para aqueles casos em que o agente público já foi condenado pela prática de ato culposo de improbidade administrativa (art. 10), temos que ter em mente que o STF, no segundo semestre de 2022, decidiu que o novo texto da Lei de Improbidade Administrativa (LIA – Lei 8.429/1992), com as alterações inseridas pela Lei 14.230/2021, não pode ser aplicado a casos não intencionais (culposos) nos quais houve condenações definitivas e processos em fase de execução das penas (ARE 843989). Com efeito, se levarmos em conta as duas decisões mencionadas, os agentes já condenados em caráter definitivo não podem ser beneficiados com a alteração legislativa, nem com a mudança o entendimento da jurisprudência. Não nos parece justo. Explicamos.
Em primeiro lugar, a Lei n. 14.230/2021 trouxe explicitamente a exigência de aplicabilidade ao sistema da improbidade administrativa dos princípios constitucionais do Direito Administrativo Sancionador (art. 1º, § 4º[3]), positivando a regra segundo a qual “A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos” (art. 17-D, LIA).
A regra em tema de direito administrativo sancionador, tal como no direito penal, é a da irretroatividade. Somente quando há superveniência de uma lei mais benéfica, as alterações materiais admitem a retroatividade, nos termos do art. 5º, XL, da Constituição Federal. Por essa simples razão já poderíamos admitir a retroatividade da Lei 14.230/2021, afastando a responsabilização inclusive dos agentes condenados. A título de exemplo: se um agente praticou ato culposo e foi condenado por infração ao art. 10 da LIA em sua redação originária, a ele podem ter sido aplicadas diversas penalidades, conforme redação anterior do art. 12, II, LIA, inclusive a perda da função pública e a suspensão de direitos políticos.
Não parece justo que a uma conduta culposa praticada em 2024 e outra exatamente igual, mas praticada em 2020, não seja dado o mesmo tratamento. É claro que há penas que já foram cumpridas integralmente e não devem ser revistas. No entanto, se um agente que foi condenado ainda está cumprindo a pena de suspensão de direitos políticos – que no caso do art. 10 poderia variar de 5 a 8 anos –, a decisão do Supremo Tribunal Federal merece ser aplicada e a pena restante extinta. Essa aplicabilidade poderia ser exigida por meio de ação rescisória, especialmente porque o art. 966, V, do CPC, ao tratar do vício sujeito à rescisão, prevê que se houver violação à “norma jurídica” – e não meramente à lei – poderá ser ajuizada ação rescisória.
Se a lei não é a única fonte do Direito, eventuais decisões contrárias ao precedente do Supremo Tribunal Federal deveriam estar enquadradas no conceito de “norma jurídica”, notadamente quando possuírem caráter vinculante. A propósito, o STJ já chegou a admitir ação rescisória por violação à precedente vinculante da Corte (REsp 1.655.722-SC, REsp 1.655.922/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, por unanimidade, julgado em 14/3/2017, DJe 22/3/2017).
Registra-se que apesar de não estar previsto como precedente obrigatório o acórdão proferido em repercussão geral, deve-se entendê-lo com a mesma força vinculante que os recursos repetitivos. O art. 1.030, I, CPC, admite essa conclusão quando permite a negativa de seguimento a recurso extraordinário interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal exarado no regime de repercussão geral. Nesse sentido:
“Além das hipóteses mencionadas, há que se considerar, ainda, a de julgamento de recurso extraordinário com repercussão geral, mesmo que tal julgamento se realize fora do regime de recursos repetitivos. A situação não é prevista no art. 927 do CPC/2015. O art. 1.030, I, a e II do CPC/2015 (na redação da Lei 13.256/2016), no entanto, dispõe sobre a negativa de seguimento a recurso extraordinário interposto contra acórdão que esteja em conformidade com entendimento do Supremo Tribunal Federal proferido no regime de repercussão geral, e, também, sobre o juízo de retratação, se o acórdão recorrido divergir de entendimento do Supremo Tribunal Federal manifestado em regime de repercussão geral. Assim, a orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida também deve ser observada pelos juízes, a despeito de a hipótese não encontrar-se prevista no art. 927 do CPC/2015. O art. 988, § 5.º, II (também na redação da Lei 13.256/2016), por sua vez, dispõe que cabe reclamação contra decisão que desrespeitar acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, circunstância que impõe que se reconheça a força vinculante de tal precedente[4]”.
“APELAÇÃO CÍVEL. MANDADO DE SEGURANÇA. CUMULAÇÃO DE PENSÃO E PROVENTOS. SERVIDOR PÚBLICO. CUMULAÇÃO. DECADÊNCIA. TEMA 359 DO STF. AMPLA DEFESA. 1. Ocorrida a morte do instituidor da pensão em momento posterior ao da Emenda Constitucional nº 19/1998, o teto constitucional previsto no inciso XI do artigo 37 da Constituição Federal incide sobre o somatório de remuneração ou provento e pensão percebida por servidor. Tema 359 do STF. 2. As causas decididas em sede de repercussão geral no STF possuem efeito vinculante, devendo a Administração Pública seguir a tese definida. 3. Negou-se provimento ao apelo. Julgou-se prejudicado o agravo interno” (TJ-DF 07036419420218070018 1422143, Relator: SÉRGIO ROCHA, Data de Julgamento: 05/05/2022, 4ª Turma Cível, Data de Publicação: 19/05/2022)
De toda forma, é certo que se ainda não houver condenação definitiva, considerando o que foi decidido no RE 656.558/SP como vinculante ou não, há ampla possibilidade de discussão sobre o tema e, consequentemente, afastamento da responsabilização por ato de improbidade administrativa culposo. Para os demais casos – em que há condenação em caráter definitivo –, é incerto o caminho da ação da rescisória. De um jeito ou de outro, é importante consultar um advogado com experiência para viabilizar eventual ação para desconstituição da coisa julgada ou mesmo para dar prosseguimento a eventuais recursos visando a aplicação do precedente do Supremo Tribunal Federal.
[1] https://www.elpidiodonizetti.com/falha-na-gestao-x-improbidade-administrativa/.
[2] O mais curioso é que se a conduta do agente público tivesse sido cometida hoje, ela sequer seria considerada contrária à lei. É que a nova Lei de Licitações permite expressamente a utilização de leilão para alienação de bens imóveis ou de bens móveis inservíveis ou legalmente apreendidos a quem oferecer o maior lance (art. 6º, XL, Lei n. 14.133/2021).
[3] Art. 1º. (…) § 4º Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.
[4] MEDINA, José Miguel Garcia: 2017, Novo Código de Processo Civil Comentado – Edição 2017 – Editor: Revista dos Tribunais
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