Advogados e advogadas que atuam em Tribunais já devem estar cientes da Resolução 591/2024, editada recentemente pelo Conselho Nacional de Justiça com o objetivo de estabelecer os requisitos mínimos para o julgamento de processos em ambiente eletrônico no Poder Judiciário. A norma tem previsão para entrar em vigor no dia 03 de fevereiro de 2025.
O texto da Resolução mereceu o repúdio de algumas entidades. Diversos conselhos seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil prometeram agir contra a normativa, argumentando, em síntese, a violação das prerrogativas da advocacia e das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
A celeridade, a eficiência, a publicidade, a modernização e a transparência do sistema judiciário são as garantias que, segundo o Conselho Nacional de Justiça, a Resolução 591/2024 busca preservar. Conforme veremos, nenhuma delas é justificativa para violar normas processuais preexistentes e previamente aprovadas em regular processo legislativo, nem para restringir direitos constitucionalmente assegurados.
Vamos aos detalhes da Resolução. Em primeiro lugar, ela estabelece que ficará a critério de cada Tribunal adotar, COMO REGRA, julgamento eletrônico de forma assíncrona, ou seja, sem qualquer interação em tempo real. De acordo com o próprio CNJ, “nesse sistema, o relator e os demais julgadores lançam seus votos ao longo de um período previamente definido, e o resultado final é registrado ao término da votação. Essa modalidade é diferente das sessões síncronas, onde os participantes interagem em tempo real, podendo ser transmitidas ao vivo para o público”[1].
O distanciamento físico entre as partes, advogados e julgadores já é uma realidade desde a pandemia de Covid-19. Para um simples despacho, para a realização de uma audiência de instrução ou para uma sustentação oral em um recurso de apelação, são utilizados recursos tecnológicos que basicamente dependem do acesso à internet e dispensam o comparecimento presencial. O advogado ou advogada pode estar fisicamente em Belo Horizonte/MG, aguardando uma audiência em uma das varas cíveis de São Paulo/SP para oitiva de uma testemunha residente no Rio de Janeiro/RJ, enquanto conversa com um novo cliente ou elabora um recurso especial. Sem dúvidas, otimizou-se o tempo de trabalho.
Ocorre que o que a Resolução pretende vai além da celeridade. Como vimos, ficará a cargo do Tribunal – no caso, de cada Relator –, estabelecer essa modalidade de julgamento. O Regimento Interno de cada Tribunal ou Conselho também poderá excepcionar a admissibilidade de julgamento eletrônico para determinados recursos, incidentes ou classes processuais (art. 2º e parágrafo único). Em suma, cada Tribunal pode criar a sua regra e exceção (ou exceções). Já vimos esse filme com os sistemas processuais antes da criação e obrigatoriedade de utilização do PJE. Ao conferir aos Tribunais amplo poder normativo, o CNJ autoriza a desarmoniza dos procedimentos, dificultando o acesso à justiça.
Outro grave problema está na utilização das sustentações orais assíncronas como regra. O advogado ou advogada terá que encaminhar as respectivas sustentações por meio eletrônico após a publicação da pauta e até 48 (quarenta e oito) horas antes de iniciado o julgamento em ambiente virtual ou prazo inferior que venha a ser definido em ato da Presidência do Tribunal (art. 9º). Assim, ao invés de realizar a sustentação oral em tempo real, na presença virtual dos desembargadores ou ministros, o profissional terá que gravar um vídeo ou áudio e disponibilizá-lo previamente aos julgadores. O menos desconfiado dos advogados certamente pensará: quem garante que essa manifestação será ouvida?
A sustentação oral em tempo real é uma garantia não apenas do advogado, mas dos jurisdicionados. Através dela é possível uma interação direta com os julgadores e o esclarecimento imediato de questões que podem surgir no momento da sessão. Trata-se de providência processual fundamental para garantir o contraditório participativo e efetivo. Não basta oportunizar ao advogado a realização da sustentação oral; é imprescindível garantir que as suas razões sejam efetivamente levadas em consideração. O poder de influenciar no convencimento do julgador é decorrente da perspectiva substancial do contraditório (art. 9º, CPC), cuja inobservância impõe a nulidade da decisão judicial:
ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. MODALIDADE PREGÃO. DENÚNCIA DE CONCORRENTE VENCIDA QUE IMPLICOU A DESCLASSIFICAÇÃO DA EMPRESA VENCEDORA DO CERTAME E IMPOSIÇÃO DE PENALIDADE. MANIFESTA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO. RECURSO DESPROVIDO. De acordo com o pensamento clássico, o magistrado efetiva, plenamente, a garantia do contraditório simplesmente ao dar ensejo à ouvida da parte, ao deixar a parte falar. Mas não é só isso. Há o elemento substancial dessa garantia. Há um aspecto, que eu reputo essencial, denominado, de acordo com a doutrina alemã, de ‘poder de influência’. Não adianta permitir que a parte, simplesmente, participe do processo; que ela seja ouvida. Apenas isso não é o suficiente para que se efetive o princípio do contraditório. É necessário que se permita que ela seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do magistrado. Se não for conferida a possibilidade de a parte influenciar a decisão do Magistrado – e isso é poder de influência, poder de inferir na decisão do Magistrado, interferir com argumentos, interferir com ideias, com fatos novos, com argumentos jurídicos novos; se ela não puder fazer isso, a garantia do contraditório estará ferida. É fundamental perceber isso: o contraditório não se implementa, pura e simplesmente, com a ouvida, com a participação; exige-se a participação com a possibilidade, conferida à parte, de influenciar no conteúdo da decisão (DIDIER JÚNIOR, Fredie, Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2009. p. 57)” (TJ-SC – MS: 20080299687 Capital 2008.029968-7, Relator: Paulo Henrique Moritz Martins da Silva, Data de Julgamento: 09/09/2010, Primeira Câmara de Direito Público).
Embora a Resolução permita ao advogado se opor ao julgamento assíncrono, o dispositivo condiciona a oposição ao deferimento do relator:
Art. 8º Não serão julgados em ambiente virtual os processos com pedido de destaque feito: I – por qualquer membro do órgão colegiado; II – por qualquer das partes ou pelo representante do Ministério Público, desde que requerido até 48 (quarenta e oito) horas antes do início da sessão e deferido pelo relator.
É certo que, se não for revogada a Resolução 591/2024, a jurisprudência passará a enfrentar os mesmos questionamentos relativos às sessões virtuais. Atualmente o STJ considera válida a realização de julgamento virtual – com sustentação oral virtual, mas em tempo real –, mesmo quando há oposição e manifestação expressa pelo julgamento presencial. Dito de outra forma: se o advogado deseja estar presente fisicamente, pode o Tribunal negar-lhe esse direito, desde que permita que ele sustente oralmente suas razões durante a sessão síncrona:
(…) A oposição ao julgamento virtual há de ser acompanhada de argumentação idônea a evidenciar efetivo prejuízo ao direito de defesa da parte, o que não se verificou. 3. Deveras, ‘mesmo quando há o direito de sustentação oral, se o seu exercício for garantido e viabilizado na modalidade de julgamento virtual, não haverá qualquer prejuízo ou nulidade, ainda que a parte se oponha a essa forma de julgamento, porquanto o direito de sustentar oralmente as suas razões não significa o de, necessariamente, o fazer de forma presencial’ (REsp n. 1.995.565/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª T., DJe de 24/11/2022). (…). (STJ, EDcl no AgRg no HC: 750081/SP, Data de Julgamento: 07/02/2023, 6ª Turma, DJe 13/02/2023).
Como a regra trazida pela Resolução 591/2024 são os julgamentos e sustentações assíncronas, é certo que o mesmo STJ será provocado para dizer se há ou não prejuízo às partes e advogados. Tememos que o argumento seja sempre o mesmo: “não há nulidade sem demonstração de prejuízo”. O problema é que quem diz ou não o que é prejuízo é o próprio Tribunal, não o advogado.
Ao dificultar o pleno exercício do direito de voz perante dos tribunais, a Resolução ainda restringe o alcance da norma processual prevista no § 4º do art. 937 do CPC. De acordo com o dispositivo, “é permitido ao advogado com domicílio profissional em cidade diversa daquela onde está sediado o tribunal realizar sustentação oral por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que o requeira até o dia anterior ao da sessão”.
O CPC, ao contrário da Resolução, confere uma garantia de amplo acesso à justiça para aqueles profissionais que DESEJAM realizar a sustentação oral por videoconferência ou outro recurso tecnológico. Não há qualquer autorização para que o relator decida, conforme sua conveniência ou do órgão ao qual está vinculado, a forma como se dará essa sustentação. Para qualquer limitação a essa prerrogativa faz-se necessária atuação do Legislativo e revogação da legislação processual. Percebe-se facilmente que a Resolução limita de forma desproporcional a atuação de advogados perante os tribunais, além de usurpar a competência do Poder Legislativo, a quem caberia editar, discutir e aprovar projeto de lei sobre o tema.
Por mais que o Conselho Nacional de Justiça deseje acelerar os julgamentos perante os órgãos do Poder Judiciário, a regulamentação sobre práticas processuais deveria passar pelo crivo do processo legislativo. Esse é, a propósito, um dos argumentos que levou um deputado federal a propor um Decreto Legislativo (PDL n. 371/2024) para suspender os efeitos da Resolução do CNJ[2]. O fundamento para a proposição dessa espécie normativa é o art. 49, XI, da Constituição Federal, que estabelece como competência do Congresso Nacional “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”. O projeto foi apresentado em 28/10/2024 e se encontra na mesma fase de tramitação desde então.
Pobre de um país cujos julgadores não conseguem ouvir os seus réus. É o que futuramente ocorrerá nas audiências de custódia[3]. Mais empobrecido fica na medida em que, de um lado permite que os Advogados falem, mas por outro cria mecanismos que permitem não ouvi-los. Nesse sentido, a aplicação da tecnologia, a todas as luzes benfazeja, torna-se malsã.
A nós, advogados, resta não apenas repudiar – isso é pouco –, mas também encontrar mecanismos para garantir o pleno exercício das garantias constitucionais daqueles a favor de quem atuamos.
[1] Fonte: https://www.cnj.jus.br/plenarios-virtuais-da-justica-deverao-ser-publicos-e-em-tempo-real/.
[2] Fonte: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2491102&filename=PDL%20371/2024
[3] A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou projeto que altera o CPP para permitir a realização de audiências de custódia por videoconferência. Atualmente, o CPP exige que a audiência de custódia seja presencial. O CNJ, por sua vez, admitiu a realização por videoconferência durante a Pandemia de Covid-19, mas a Resolução que permitia essa prática foi revogada.
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Elpídio Donizetti Sociedade de Advogados
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