A Lei 14.382/2022 trouxe diversas novidades no campo registral para além da possibilidade de alteração extrajudicial do nome civil[1]. Neste espaço abordaremos a desjudicialização do procedimento de adjudicação compulsória, atualmente previsto no art. 216-B da Lei de Registros Públicos.
Primeiramente vamos compreender o que significa adjudicar compulsoriamente um bem imóvel. Imagine que João adquire de Antônio um apartamento na Avenida Afonso Pena, mediante promessa de compra e venda firmada sem cláusula de arrependimento e devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis. Mesmo com o pagamento das prestações acordadas, o promitente vendedor recusa-se a outorgar a escritura definitiva em favor de João. Nesse caso, a promessa de compra e venda firmada entre João e Antônio gera para aquele um direito real à aquisição da propriedade, cujo caráter é erga omnes. Nesse instante, o direito do promissário comprador alcança terceiros estranhos à relação contratual, de modo que João pode reivindicar, de quem quer que seja, a propriedade em relação ao apartamento.
Agora imagine que essa promessa de compra e venda não foi submetida a registro. João ainda poderá perseguir o direito de propriedade? Claro que sim, pois o registro só é necessário para a proteção perante terceiros. Em outras palavras, sua formalização para a produção de efeitos materiais decorrentes da relação obrigacional entre os contratantes originários é dispensável. Nesse sentido é o enunciado da Súmula 239 do Superior Tribunal de Justiça: “O direito à adjudicação compulsória não se condiciona ao registro do compromisso de compra e venda no cartório de imóveis”.
Nos dois exemplos – com ou sem registro – o compromisso de compra e venda de imóvel confere ao adquirente o denominado direito de sequela, que se traduz na possibilidade de o comprador exigir do vendedor, após a quitação do valor ajustado, a outorga da escritura definitiva pela adjudicação compulsória. Esse procedimento, até a entrada em vigor da Lei 14.382/2022, era realizado apenas judicialmente. Para o êxito nessa espécie de demanda eram imprescindíveis o preenchimento dos pressupostos processuais genéricos, além dos especiais, a saber: (i) a juntada do instrumento particular de compra e venda; (ii) a prova do adimplemento integral do preço e (iii) a prova da recusa do vendedor na outorga da escritura pública definitiva. A finalidade da ação judicial era a de suprir a declaração de vontade pelo contratante, obtendo-se uma ordem judicial – sentença de natureza constitutiva – com efeitos equivalentes, que deveria ser levada, após o trânsito em julgado, para o competente registro no cartório de imóveis.
Em suma, a adjudicação substitui a recusa do promitente vendedor ou a existência de outros óbices à transferência, como o falecimento do vendedor sem a outorga da escritura definitiva ou a sua não localização. Vale ressaltar que por se tratar de um direito potestativo, que não se extingue pelo não uso, não há prazo decadencial para a propositura da ação. De toda forma, a orientação jurídica mais adequada é a de propor a demanda tão logo o comprador efetue o pagamento integral do preço.
Agora, sem prejuízo da via jurisdicional, o comprador poderá requerer administrativamente a adjudicação compulsória do imóvel objeto de promessa de venda (ou de cessão) no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel. Isso quer dizer que a outorga da escritura definitiva não mais dependerá de ordem judicial, podendo ser realizada diretamente no cartório de registro imobiliário.
A nova lei também confere a legitimidade para o pedido administrativo aos sucessores e ao promitente vendedor. Pode parecer estranho, mas há interesse do vendedor em transferir a propriedade, especialmente no caso de falecimento do comprador e para afastar eventual responsabilização pelo pagamento de tributos incidentes sobre o imóvel. No âmbito da jurisprudência[2], jamais se admitiu essa possibilidade. Ou seja, somente se considerava como legitimado ativo para a ação judicial o promitente comprador. Justificava-se esse posicionamento a partir da inexistência de previsão legal que autorizasse a extensão da legitimação ativa ao promitente vendedor (arts. 1.417 e 1.418, CC/2022). A eventual regularização da titularidade do domínio pelo vendedor deveria ser buscada mediante ação de obrigação de fazer. Agora, na prática, tanto o comprador quanto vendedor detêm o direito de adjudicar o bem imóvel sempre que seus interesses estiverem ameaçados.
De acordo com o art. 216-B da Lei de Registros Públicos, inserido pela Lei 14.382/2022, o pedido administrativo deverá ser instruído com os seguintes documentos: (i) instrumento de promessa de compra e venda ou de cessão ou de sucessão, quando for o caso; (ii) prova do inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de 15 (quinze) dias, contado da entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de títulos e documentos; (iii) certidões dos distribuidores forenses da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente que demonstrem a inexistência de litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda do imóvel objeto da adjudicação; (iv) comprovante de pagamento do respectivo Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI); (v) procuração com poderes específicos. Nota-se que a assistência de advogado é obrigatória e que a existência anterior de ação judicial com o mesmo objetivo impede o prosseguimento do pedido extrajudicial.
Embora não haja previsão expressa, pela própria natureza do direito a ser perseguido deve ser exigida a prova da quitação pelo promitente comprador ou, pelo menos, que no contrato conste expressamente a previsão de pagamento à vista no ato da assinatura[3]. Essa comprovação de quitação pode ser realizada, por exemplo, através de mensagens trocadas entre os contratantes, inclusive por meio de aplicativos ou e-mails, já que a lei não traz nenhuma previsão expressa quanto ao modo dessa comprovação. Ainda é possível admitir a quitação se houver prova do decurso do prazo prescricional para a cobrança das parcelas inadimplidas (exemplo: João se comprometeu a pagar R$ 200 mil pelo apartamento, em 10 prestações mensais. Transcorrido mais de 5 anos após a data prevista para pagamento da última parcela (art. 206, §5º, I, CC/2002), ainda que João esteja inadimplente, poderá requerer a adjudicação do imóvel em face de Antônio). Essa possibilidade decorre do entendimento jurisprudencial segundo o qual operada a prescrição de dívida de parcela do contrato, fica prejudicado o direito de exigir sua extinção com base na mesma causa (ex: AgInt no REsp n. 1.538.176/RJ, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, julgado em 22/06/2021, DJe 25/06/2021).
Em relação à notificação, pode surgir a seguinte dúvida: se a lei exige para a formalização do pedido extrajudicial a existência de prévia comunicação, a não localização do destinatário impede a análise do pedido pelo oficial do registro de imóveis? Pensamos que não, pois assim como ocorre com a usucapião extrajudicial, a citação por edital deve ser uma opção para o interessado, aplicando-se analogicamente o art. 216-A, § 13, da Lei de Registros Públicos[4]. Cabe lembrar que, conforme expressamente previsto na nova legislação, a notificação extrajudicial deve ser expedida pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de títulos e documentos. O interessado não poderá, portanto, se valer de notificação expedida sem a intervenção do oficial do RI ou CTD.
Diversamente do que ocorre com o pedido de usucapião, para a adjudicação compulsória há necessidade de comprovação do pagamento de ITBI. Isso porque, a adjudicação não é forma originária de aquisição da propriedade, mas derivada. Cuida-se, portanto, de mera regularização registrária atinente a precedente transmissão de bem imóvel, configurando fato gerador do imposto.
Apresentados os documentos e garantida a manifestação da parte contrária (art. 160, LRP), o oficial do registro de imóveis da circunscrição onde se situa o imóvel procederá ao registro do domínio em nome do promitente comprador, servindo de título a respectiva promessa de compra e venda ou de cessão ou o instrumento que comprove a sucessão (art. 216-B, § 3º, LRP). A manifestação da parte adversa deve ser de não contrariedade, justamente porque o êxito do pedido administrativo depende da existência de consenso. Se houver oposição, restará ao interessado recorrer à via jurisdicional. Em caso de silêncio, pensamos que deve ser aplicada a mesma regra destinada à usucapião extrajudicial: quem cala, consente. Isso porque, para o pedido de usucapião a Lei de Registros Públicos (art. 216-A, § 2º) interpreta o silêncio como concordância. Para a adjudicação não pode ser diferente.
Para sintetizar: em caso se recusa ou outro óbice para a outorga da escritura, a parte interessada, por meio de advogado, deve se dirigir ao oficial do registro de imóveis da situação do bem e requerer seja procedida a adjudicação compulsória, apresentando os documentos exigidos pelo art. 216-B, §1º, da LRP. O Oficial dirigirá o procedimento, inclusive notificando a parte contrária para manifestação. Na hipótese de aquiescência ou silêncio, a adjudicação será admitida, lavrando-se a escritura pública em favor do promitente comprador.
[1] Tema abordado em outra oportunidade pela Advogada e Professora Tatiane Donizetti: http://genjuridico.com.br/2022/07/25/alteracao-do-nome-civil/.
[2] Exemplificando: “O promitente vendedor não detém legitimidade para propor ação de adjudicação compulsória, devendo, no entanto, ser oportunidade a adequação do procedimento. É documento indispensável à propositura da ação a Certidão de Registro do Imóvel, notadamente para a comprovação da propriedade, devendo ser determinada a emenda da inicial para sua juntada” (TJ-MG – AC: 10209150017835001 MG, Relator: Antônio Bispo, Data de Julgamento: 14/07/2016, Data de Publicação: 22/07/2016)
[3] “A existência de cláusula contratual prevendo a quitação do preço no ato da assinatura com pagamento à vista é suficiente para comprovar a quitação e viabilizar a adjudicação compulsória do imóvel. Para fins de adjudicação compulsória do imóvel é suficiente a prova da propriedade, sendo desnecessário o registro em cartório do contrato de compra e venda” (TJ-MT – AC: 00034379520128110018 MT, Relator: SEBASTIAO BARBOSA FARIAS, Data de Julgamento: 03/12/2019, Primeira Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 10/12/2019).
[4] Art. 216 § 2º Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo ou na matrícula dos imóveis confinantes, o titular será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar consentimento expresso em quinze dias, interpretado o silêncio como concordância. (…) § 13. Para efeito do § 2º deste artigo, caso não seja encontrado o notificando ou caso ele esteja em lugar incerto ou não sabido, tal fato será certificado pelo registrador, que deverá promover a sua notificação por edital mediante publicação, por duas vezes, em jornal local de grande circulação, pelo prazo de quinze dias cada um, interpretado o silêncio do notificando como concordância.
Elpídio Donizetti
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Elpídio Donizetti Sociedade de Advogados
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