O exercício da jurisdição, que compete aos juízes em todo o território nacional, é vinculado, isto é, está jungido aos limites das normas que compõem o devido processo legal. Em outras palavras, o sistema normativo processual – composto por precedentes, regras e princípios –, a par de estabelecer os ônus e faculdades das partes, limita o exercício do poder jurisdicional pelo Estado, o qual somente pode ser exercido de forma válida por meio do processo e com a devida observância dos princípios e das regras que compõem o ordenamento jurídico.
Apesar de não estar expressamente previsto na legislação processual, o devido processo legal encontra fundamento no art. 5º, LIV, da Constituição Federal. Ele é considerado como o postulado fundamental do processo, preceito do qual se originam e para o qual, ao mesmo tempo, convergem todos os demais princípios e garantias fundamentais processuais, como a ampla defesa e o contraditório. O devido processo legal é, ao mesmo tempo, preceito originário e norma de encerramento do processo, portador, inclusive, de garantias não previstas em texto legal, “mas igualmente associada à ideia democrática que deve prevalecer na ordem processual”.[1]
Diz-se, nesse contexto, que o devido processo legal é cláusula geral, aberta, geradora de princípios vários e autônomos, incidentes sobre toda e qualquer atuação do Estado, e não exclusivamente sobre o processo jurisdicional.
O devido processo legal é o princípio que garante o processo regido por garantias mínimas de meios e de resultado, ou seja, com o emprego de técnicas adequadas e conducentes à tutela pretendida. Aliás, o devido processo legal e todas as demais garantias fundamentais são aplicáveis até mesmo às relações entre particulares, independentemente de mediação ou determinação do legislador infraconstitucional. Trata-se da chamada eficácia horizontal, privada ou externa dos direitos fundamentais. Consagrando a tese da aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas, o STF já teve oportunidade de anular ato de Sociedade Civil de Direito Privado que excluiu sócio de seus quadros sem prévio contraditório e ampla defesa, preceitos decorrentes do devido processo legal. Confira o julgado:
“Sociedade civil sem fins lucrativos. União brasileira de compositores. Exclusão de sócio sem garantia da ampla defesa e do contraditório. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Recurso desprovido. I. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. […]. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. III. […]. A União Brasileira de Compositores – UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras” (STF, RE 201.819/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 11.10.2005).
O devido processo legal apresenta duas dimensões: material (ou substantiva) e formal.
Em uma concepção formal, o devido processo legal nada mais é do que o direito de processar e ser processado de acordo com as normas preestabelecidas para tanto, preceitos estes também criados de acordo com um devido processo previamente determinado (devido processo legislativo).
Porém, o art. 5º, LIV, da CF/1988, ao prever que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, não se limitou a consagrar a necessária observância às regras que regem o processo. A garantia constitucional vai além.
Em uma perspectiva substancial (substantive due process of law), o devido processo legal é a exigência e garantia de que as normas sejam razoáveis, adequadas, proporcionais e equilibradas. Corresponde, para muitos, ao princípio da proporcionalidade. O processo devido é aquele “regido por garantias mínimas de meios e de resultado, com emprego de instrumental técnico-processual adequado e conducente a uma tutela adequada e efetiva”.[2]
O devido processo legal substancial constituiu verdadeira forma de se controlar o conteúdo das decisões judiciais (o justo no caso concreto) e das leis. Não basta, por exemplo, que a sentença seja formalmente regular, mas injusta, incorreta. Da mesma forma, violará a garantia ao devido processo legal substancial a lei formalmente válida, mas que suprima o direito fundamental ao contraditório. A respeito, confira o seguinte julgado, da lavra do então Ministro Celso de Mello:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei nº 8.713/93 (art. 8º, § 1º, e art. 9º). Atividade legislativa e observância do princípio do substantive due process of Law. Conhecimento parcial da ação. Medida liminar deferida em parte. Autonomia partidária. […]. A cláusula do devido processo legal – objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição – deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe da competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal. Observância, pelas normas legais impugnadas, da cláusula constitucional do substantive due process of law” (STF, ADI-MC 1.063/DF, Tribunal Pleno, j. 18.05.1994, DJ 27.04.2001).
A relevância do devido processo legal transcende o aspecto jurisdicional, de modo que não somente os juízes e aqueles que participam do processo judicial devem observá-lo. A Administração Pública, por exemplo, na condução de um processo administrativo disciplinar, deve observância ao referido princípio, o que pode ser extraído da parte final do art. 5º, LV, CF/88. O devido processo legal constitui princípio-matriz, de aplicabilidade a todas as funções estatais (jurisdicional, legislativa e administrativa).
No âmbito do procedimento administrativo, o devido processo legal possui dois sentidos: (i) procedimental, que consiste no respeito aos procedimentos e formalidades previstas em lei; (i) substantivo, relacionado à atuação da administração pública pautada na razoabilidade e proporcionalidade, sem o cometimento de excessos.
Nesse contexto destaca-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao interpretar o art. 8º da CADH[3], entendeu que as garantias judiciais se aplicam a todos os processos, seja ele penal, laboral, fiscal ou de qualquer natureza. A Corte IDH ressaltou que:
“A justiça, realizada através do devido processo legal, como verdadeiro valor juridicamente protegido, deve ser garantida em todo processo disciplinar, e os Estados não podem subtrair desta obrigação argumentando que não se aplicam as garantias do art. 8º da Convenção Americana no caso de sanções disciplinares e não penais. Permitir aos Estados esta interpretação equivaleria à sua livre vontade de aplicação ou não do direito de toda pessoa a um devido processo” (Mérito, reparações e custas, § 129, caso Baena Ricardo vs. Panamá).
Ao comentar esse dispositivo, Flávia Piovesan acrescenta que “os indivíduos têm direito a um devido processo legal, nos termos dos arts. 8.1 e 8.2 da CADH, na seara penal, assim como em quaisquer outras, judiciais ou não”. E continua a autora:
“A lógica por trás dessa conclusão reside no fato de que, “em qualquer matéria, inclusive laboral e administrativa, a discricionariedade da Administração tem limites intransponíveis e que não pode a Administração ditar atos administrativos sancionatórios sem outorgar a garantia do devido processo”[4].
Em outro precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos ressaltou-se que o devido processo administrativo só se implementa quando respeitadas as garantias da ampla defesa, do contraditório, as regras de competência e todos os direitos previstos no artigo 8º da CADH. Com efeito, “tanto os órgãos jurisdicionais como os de outro caráter que exerçam funções de natureza materialmente jurisdicional, têm o dever de adotar decisões justas baseadas no respeito às garantias do devido processo legal” (Mérito, reparações e custas, § 104, Caso Ivcher Brostein vs Peru).
Especialmente em procedimentos administrativos e investigativos é comum nos depararmos com providências absurdas, totalmente desvinculadas das mínimas garantias constitucionais e internacionais. Basta lembrar que recentemente tivemos um advogado preso por ter orientado seu cliente a permanecer em silêncio durante o interrogatório policial.
Um estudo sobre a jurisprudência internacional permite que nós, advogados, tenhamos mais elementos para discutir esses abusos, independentemente da natureza do procedimento. Por exemplo, apesar de a jurisprudência nacional dispensar a assistência de defensor ou advogado na fase investigativa do processo penal, a Corte IDH entende exatamente o contrário. No julgamento do Caso Acosta Calderón vs Equador, por exemplo, a Corte IDH considerou a imprescindibilidade da defesa técnica desde a fase investigativa, diante da vulnerabilidade do sujeito passivo. A plenitude do direito de defesa, prevista inclusive nas 100 Regras de Brasília (artigo 10.22), não se coaduna com a dispensa da participação do advogado ou defensor. Essa mesma ideia foi reforçada no julgamento do Caso López Álvarez vc Honduras.
Se o advogado é figura essencial à justiça, a sua presença não pode ser relegada, tampouco a sua importância ficar adstrita a determinados feitos. Lutemos pelas garantias de nossos clientes e pelo exercício pleno da nossa profissão!
Elpídio Donizetti
[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 245.
[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 247.
[3] “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.
[4] PIOVESAN, Flávia. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 2019, p. 113.
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