O dolo pode ser identificado em várias temáticas de estudo no âmbito das ciências jurídicas, sobretudo, naquela pertinente aos conceitos e institutos que dizem respeito à dogmática do Direito Civil e do Direito Processual Civil brasileiros.
Inicialmente, antes de traçar os contornos específicos da matéria, sob a ótica do Direito vigente, imperioso reconhecer que o dolo não é objeto de estudo recente e, tampouco, isolado. Ainda que abreviadamente, em auxílio à compreensão do instituto na atualidade, vale breve menção à evolução histórica do dolo e sua relação com outras figuras do Direito.
O dolo material, como espécie da culpa lato sensu, no âmbito do Direito Civil, se imbrica com o instituto da responsabilidade civil. Não custa lembrar que nos primórdios da formação da vida em sociedade é possível identificar a prevalência da vingança privada, quando vislumbrada a ocorrência de dano de um indivíduo a outrem.
Nesse tempo, o ser humano, quando agredido, defendia-se com seus próprios meios. Assim, para cada ato de agressão que sofria, o indivíduo – ou o grupo ao qual pertencia – impunha ao agressor sua própria forma de retaliação[1].
A alteração de tal paradigma ocorreu gradativamente e de maneira não retilínea, vindo a se delinear de forma mais expressiva no âmbito do Direito Romano. Foi nesse período que tornou-se possível a invocação do instituto da culpa, em sentido amplo, para análise da configuração do dano.
Inaugurou-se, assim, o esboço do sistema de responsabilidade civil subjetiva, afastando-se, preponderantemente, o império da responsabilidade objetiva coletiva que antes vigia com base na vingança.
Todo esse constructo histórico serviu de inspiração a diversos países ocidentais para estruturar não apenas a teorização normativa da responsabilidade civil, como também da culpa em seu sentido mais abrangente, na qual se insere a noção da culpa estrita e do dolo material.
No âmbito do Direito Civil brasileiro, a construção discursiva se sustentou nos pilares do Direito Romano, e ainda hoje é possível identificar suas influências quando se vislumbra a inserção da culpa abrangente no Código Civil de 2002.
Em diversos dispositivos do diploma supracitado é possível divisar a contemplação do instituto da culpa e, nele, a abrangência do dolo material civil.
A título de exemplo, o Código Civil trata especificamente do dolo material em seu art. 145, que assim determina:
Art. 145. São os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa.
No artigo 186 já se identifica, de forma mais abrangente, a previsão globalizante do instituto da culpa, que abarca o dolo material em seu conteúdo.
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Dito isso, a indagação que se apresenta é a seguinte: o que pode ser compreendido como dolo material civil, tendo-se em conta ser este um desdobramento do conceito maior de culpa?
De fato, como se pode verificar com a exposição do texto legal, o Código Civil não trata da definição do instituto sob análise, ficando a complexa tarefa conceitual a cargo da doutrina.
Washington de Barros Monteiro[2], ao discorrer sobre a figura da responsabilidade civil, acaba por estabelecer o locus e a definição do dolo. Afirma o ilustre jurista que a responsabilidade civil, “pressupõe sempre a existência de culpa (lato sensu), abrangendo o dolo (pleno conhecimento do mal e direta intenção de o praticar), e a culpa (stricto sensu), violação de um dever que o agente podia conhecer e acatar, mas que descumpre por negligência, imprudência ou imperícia”.
Desse modo, é possível reconhecer que o dolo no Direito Civil, no contexto de uma relação jurídica de direito material, pode ser definido como sendo a vontade livre e deliberada de um indivíduo de causar dano a outro. Note-se que a relação jurídica é bilateral, já que, diferente da relação do processo, não envolve, necessariamente, a presença de terceiros para sua caracterização.
Tendo-se em vista os contornos normativos e doutrinários que envolvem o dolo material civil pode-se afirmar que a matéria é objeto de estudo no âmbito do Direito Civil.
Já no que diz respeito à temática do Dolo processual ressalta-se que este pode ser definido como o ardil, o artifício, empregado por determinado sujeito, que integra a relação processual, com o objetivo de ludibriar o juízo.
Desse modo, é possível afirmar que o dolo processual guarda estreita relação com a má-fé processual, pois, nesse caso, um dos sujeitos manifesta-se, voluntariamente, com o propósito de iludir o juízo, para que a decisão seja proferida em seu favor.
Humberto Theodoro Júnior[3] igualmente aponta os contornos da conduta caracterizadora do dolo processual:
A configuração do dolo – ato voluntário da parte vencedora em prejuízo do vencido –, não mais exige, na evolução do direito processual, necessariamente, a má-fé do litigante, bastando seja revelada uma ofensa ao princípio da boa-fé objetiva, que o novo Código adota, como “norma fundamental” (art. 5º).
Na jurisprudência também é possível visualizar a definição do instituto que ora se examina e, a partir do confronto com a do dolo civil, permite-se extrair as diferenças e locus dos dois institutos. Enquanto o dolo civil ou material situa-se num plano anterior ao processo e dele pode constituir matéria subjacente, como por exemplo, numa ação anulatória de negócio jurídico, o dolo processual é praticado no curso da relação processual, tanto que o art. 966, III do CPC, ao descrever um “tipo” de rescindibilidade, menciona a parte vencedora em detrimento da parte vencida. Como se pode ver nos julgados abaixo, o dolo processual pode não somente visar o engodo da parte, mas também do juiz.
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. GUARDA PROVISÓRIA CONCEDIDA À AVÓ. BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. ART. 485, III, V E VI, DO CPC. VIOLAÇÃO A LITERAL DISPOSIÇÃO DE LEI, DOLO E FALSIDADE DA PROVA. NÃO OCORRÊNCIA. I – O manejo da ação rescisória é, por princípio, medida judicial excepcional, e sua admissão deve ser restritiva, em atenção ao princípio da segurança jurídica. II – A rescisão fundada no inciso V do art. 485 do CPC exige afronta direta ao texto legal, ou seja, o entendimento firmado na decisão rescindenda deve desprezar o sistema das normas aplicáveis. III – A configuração do dolo processual depende da violação voluntária, pela parte vencedora, do dever de veracidade previsto no art. 17, II, do CPC, que induza o julgador a proferir decisão reconhecendo-lhe um falso direito (AR 3785/RJ. Segunda Turma. Rel. Ministro João Otávio de Noronha). IV – Consoante entendimento firmado pela Terceira Seção deste Sodalício Tribunal, “afasta-se o dolo ou a falsidade da prova se não houve impedimento ou dificuldade concreta para atuação da parte, sobretudo quando os elementos dos autos, em seu conjunto, denotam o acerto do julgado rescindendo” (AR 1370/SP. Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior. Terceira Seção. DJe de 19/12/2013). V – Ação rescisória improcedente. (STJ – AR: 1619 MT 2001/0047942-1, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Julgamento: 25/02/2015, S3 – TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 05/03/2015).
[…].
2) O dolo processual se caracteriza quando se engana o juiz ou a parte com o objetivo de alterar o desfecho do processo. A suscitação de quitação integral do imóvel, respaldada por documentos que, segundo o suscitante, comprovam a alegação, não indica dolo processual. (STJ – AREsp: 1022588 DF 2016/0310700-7, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Publicação: DJ 12/12/2016).
Em face do que se afirmou visível é a distinção entre dolo material e dolo processual. A principal diferença reside na natureza jurídica da relação que se vislumbra com a invocação de cada instituto. Enquanto o dolo civil atinge a relação material, que, de um modo geral, ocorre no âmbito privado, entre as partes, o dolo processual, a seu turno, se imiscui na relação jurídica processual, naquela sequência de atos procedimentais que integram o processo, com potencialidade para alcançar os sujeitos parciais ou mesmo o juízo.
Veja-se que, ainda que o processo verse sobre o dolo material ou civil – fato jurídico, gerador de nulidade e de responsabilidade civil – o dolo processual com ele não se relaciona, porquanto este atinge apenas e tão somente a integridade do processo. Assim, é perceptível que o dolo civil vincula-se a uma relação jurídica fática, enquanto o dolo processual fixa-se no plano da relação jurídica instrumental.