Recentemente o Plenário do Supremo Tribunal Federal não conheceu de Ação Rescisória que versava sobre mudança de entendimento jurisprudencial. Firmando-se no enunciado da Súmula nº 343 (“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”) e na tese que decidiu o tema 136 da Repercussão Geral (“Não cabe ação rescisória quando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente”), os Ministros mantiveram, por unanimidade, o acórdão rescindendo.
Inicialmente devemos lembrar que a Ação Rescisória é o instrumento processual que possibilita a rescisão, total ou parcial, de uma decisão judicial de mérito ou de decisão terminativa inviabilizadora da composição da lide, de modo a restaurar a justiça parametrizada no ordenamento jurídico.
A decisão a ser rescindida tanto poderá ser de mérito como meramente terminativa, desde que, neste caso, não seja possível renovar a ação. Vamos facilitar com um exemplo: por erro na verificação da identidade das partes, da causa de pedir e do pedido, o juiz de primeiro grau extingue um mandado de segurança, sem resolução de mérito, por reconhecer que houve litispendência entre o mandamus atual e uma ação anterior. O autor do mandado de segurança não apresenta recurso e a decisão transita em julgado. Como a litispendência constitui pressuposto processual negativo, a sua configuração implica extinção do processo sem resolução do mérito (art. 485, V, CPC), impedindo que o autor proponha uma nova demanda. Ocorre que nesse exemplo, em razão de erro por parte do julgador, o autor ficará prejudicado se não puder propor uma nova ação. Justamente por isso se permite que ele ajuíze ação rescisória para desconstituir essa decisão equivocada.
O Código de Processo Civil atual, alinhando-se ao entendimento que se firmou ainda na vigência do CPC/1973, admite ação rescisória para desconstituir provimento que, embora não seja de mérito, impeça a propositura de nova demanda (art. 966, § 2º, I). Além disso, o Código expressamente permite a rescindibilidade de decisão que impede a admissibilidade de recurso correspondente (art. 966, § 2º, II). Essa possibilidade surge em razão do fato de o juízo negativo de admissibilidade impedir que o tribunal se manifeste sobre o mérito recursal, inclusive sobre eventuais nulidades e demais questões de ordem pública. Assim, vedar a propositura de ação rescisória contra decisão que inadmite o recurso correspondente seria afrontar o próprio direito de ação – que engloba o direito de recorrer – e os princípios da inafastabilidade e do duplo grau de jurisdição.
Como se vê, a rigor, o principal requisito para o cabimento da rescisória não é necessariamente a decisão de mérito, mas sim a impossibilidade de renovação da ação, a restrição ao acesso da tutela jurisdicional e a impossibilidade de rediscussão da matéria, seja em razão do obstáculo intransponível da coisa julgada material ou formal.
No caso concreto, a Ação Rescisória visava rescindir acórdão do próprio STF, que manteve decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região reconhecendo o direito de creditamento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) a uma determinada empresa de alimentos, adquirente de insumos sujeitos à alíquota zero.
A União, autora da Ação Rescisória, argumentava que até o ano de 2017, a jurisprudência do STF admitia o creditamento do referido imposto. Contudo, esse entendimento havia sido superado, razão pela qual, com base no art. 485, V, do CPC/1973 (art. 966, V, CPC/2015), seria possível desconstituir a decisão. Como o novo entendimento da Corte não autoriza o direito de crédito de IPI para contribuinte adquirente de insumos sujeitos à alíquota zero, o acórdão deveria ser rescindido.
Essa suposta causa de rescindibilidade apontada pela União estava presente no CPC/1973 como violação à “literal disposição de lei” (art. 485, V). O CPC/2015, ao adotar a expressão “violação manifesta de norma jurídica”, passou a contemplar, também, os precedentes judiciais. A súmula vinculante editada pelo STF, por exemplo, deve ter o mesmo tratamento da “lei” para fins de admissibilidade da ação rescisória, porquanto constitui fonte primária do direito, com eficácia erga omnes, vinculando os demais órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública Direta e Indireta.
Entretanto, de acordo com os §§ 5º e 6º do art. 966, não é toda e qualquer decisão que constitui um precedente, ainda que vinculante, que é capaz de ensejar ação rescisória:
“Art. 966.
[…] § 5º Cabe ação rescisória, com fundamento no inciso V do caput deste artigo, contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento.
§ 6º Quando a ação rescisória fundar-se na hipótese do § 5º deste artigo, caberá ao autor, sob pena de inépcia, demonstrar, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta ou de questão jurídica não examinada, a impor outra solução jurídica.”
Se, por exemplo, no processo de conhecimento a parte invoca uma súmula do STJ como norma jurídica, a sua aplicação ao caso concreto depende da realização do distinguishing, ou seja, da demonstração de semelhança ou de distinção entre os fundamentos determinantes do precedente e os do caso sob julgamento. Somente se houver semelhança pode-se aplicar a ratio decidendi do precedente. A não aplicação do precedente ao caso concreto exige que o julgador demonstre a inexistência de semelhança entre a decisão paradigma e o caso proposto ou fundamente a eventual superação do precedente (overruling).
No mais, o CPC atual reforça que é indispensável que a violação à norma seja manifesta, isto é, a contrariedade ao texto da lei ou ao precedente vinculante, deve ser constatável de plano. Em qualquer caso, havendo ensejo para interpretações controvertidas, a rescisória não será cabível, nos termos da já mencionada Súmula nº 343 do STF.
Frise-se que o objetivo do STF, consubstanciado no referido enunciado, sempre foi de resguardar o caráter excepcional da Ação Rescisória, que não pode servir para rescindir uma decisão que tenha adotado posição razoável, mesmo que esta venha a ser modificada posteriormente pelo sistema. Essa parece ser a orientação que ainda prevalece, mesmo com a ampliação dos parâmetros normativos.
A propósito, no recente julgamento da Ação Rescisória 2.297, ocorrido em 03/03/2021, a argumentação do relator do caso, Min. Edson Fachin, girou em torno do respeito à coisa julgada e ao princípio da segurança jurídica. Para o STF, a jurisprudência não deve retroagir para atingir a coisa julgada, de modo que, mesmo que ocorra mudança de entendimento sobre a matéria, as situações já consolidadas não poderão ser revistas, pois a relativização da coisa julgada é medida sempre excepcional.
De toda forma, temos que ter em mente duas considerações: para evitar situações como essa, é imprescindível que a jurisprudência dos Tribunais e Cortes Superiores seja dotada de um mínimo de previsibilidade. Não se pode comparar a busca pela tutela jurisdicional com um jogo de loteria. Ainda que a atividade interpretativa seja passível de alteração, especialmente diante dos movimentos constantes da sociedade, “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (art. 926, CPC). O dever dos tribunais de uniformizar sua jurisprudência afastaria, por exemplo, a não rara desarmonia entre as Turmas do Superior Tribunal de Justiça.
Outra ponderação, ou melhor, exceção ao que foi mencionado, está presente na vinculação às decisões firmadas em controle de constitucionalidade. Se a decisão violar norma posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo, eventuais decisões controvertidas sobre essa norma não poderão ser utilizadas para impossibilitar a rescisão do julgado. Nesse caso caberá ação rescisória na forma do art. 525, § 15, do CPC atual. Pode-se dizer, então, que a decisão baseada em lei posteriormente julgada inconstitucional se trata de mais uma hipótese em que será possível a utilização da ação rescisória.
Sintetizando, a partir do acórdão do STF podemos considerar que os processos que estejam em andamento no momento de alguma alteração jurisprudencial poderão ser influenciados por tal modificação. Entretanto, de modo diverso, em virtude da segurança jurídica e imutabilidade da coisa julgada, as decisões em processos com trânsito em julgado não poderão sofrer rescisão exclusivamente em razão da alteração do posicionamento.
Elpídio Donizetti