A Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021, que em vigor em 26 de outubro de 2021, promoveu inúmeras alterações na Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/1992). Neste espaço iremos tratar das novas regras relativas à prescrição.
Antes da alteração, os prazos prescricionais variavam de acordo com o sujeito ativo do ato de improbidade. Por exemplo, para cargos em comissão ou função de confiança, o prazo para ajuizamento da ação era de cinco anos após o término do exercício; para os casos de conduta praticada por servidor e punível com demissão, o prazo aplicável seria o da lei específica para faltas disciplinares; já para as situações em que a conduta do servidor também configura crime, a jurisprudência passou a aplicar os prazos previstos na legislação penal. Além dessa ausência de uniformidade, também foram diversos os precedentes que desconsideraram os termos previstos na lei para estabelecer, por exemplo, que o termo inicial somente poderia ocorrer a partir do conhecimento do fato pela Administração Pública. Com Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021 os prazos prescricionais foram unificados, garantindo mais segurança jurídica e estimulando a eficiência da Administração e do Poder Judiciário.
Antes de estabelecer as novas regras, mais importante é definir quando elas poderão ser aplicadas, ou seja, se é viável a retroatividade dos prazos e termo inicial definidos pela Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021.
Como se sabe, a prescrição tem entre suas principais finalidades preservar o princípio da segurança jurídica e garantir estabilidade nas relações, evitando que as situações permaneçam perpetuamente de forma indefinida. Seja no campo penal, civil ou administrativo, a prescrição é um direito fundamental legítimo do cidadão. Ademais, a limitação temporal é imprescindível quando se está diante de um direito sancionador, ainda que sem total coincidência com o direito penal.
O Direito Punitivo estatal, tanto no Direito Penal como no Direito Administrativo, se funda sobre um conjunto de princípios e regras garantidoras de direitos dos administrados e dos cidadãos que, apesar das diferentes formas de aplicação, a depender de se tratar de infração penal ou administrativa, informa o ius puniendi estatal. Sem a observância de tais normas a atividade punitiva estatal se torna ilegítima e arbitrária (…) Com efeito, é no conceito de Estado Democrático de Direito e no de legitimidade da ação estatal que o Direito Administrativo Sancionador encontra o seu núcleo fundamental, com a necessária e indispensável preocupação de contenção do poder aplicado pelo Estado (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; GARCIA, Flávio Amaral. A principiologia no direito administrativo sancionador. Revista eletrônica de direito administrativo econômico, Salvador, n. 28, nov./jan. 2011/2012). Sem grifos no original.
O caráter sancionador da Lei n. 8.429/1992(Lei de Improbidade Administrativa) é irrefutável, seja do ponto de vista doutrinário ou jurisprudencial:
“(…) O surgimento e a consolidação do domínio da improbidade administrativa – previsto já no artigo 37, parágrafo 4º da Constituição Federal, regulamentado inicialmente pela Lei nº 8.429/1992 – expandiu o domínio material do Direito Administrativo Sancionador, incluindo nele sanções pronunciadas pelo Poder Judiciário (no exercício da jurisdição federal ou estadual cível comum), ao lado das classicamente denominadas “sanções administrativas”, editadas por órgãos ou entes no exercício de função administrativa. Este domínio da improbidade arregimentou os esforços institucionais de órgãos de controle dos agentes públicos (Ministério Público e advocacias públicas) no enfrentamento de práticas corruptivas e, com isso, sofreu vasta expansão doutrinária, jurisprudencial e legislativa nestes últimos 26 anos, culminando com a aprovação da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), seguindo o influxo das convenções internacionais contra a corrupção internalizadas no Brasil (OCDE, OEA e ONU). É certo que o tema da improbidade administrativa encontra-se abordado no seio de diferenciadas ramificações do Direito (constitucionalistas, penalistas, processualistas etc.). Todavia, o estudo sistemático da Improbidade Administrativa cabe, do ponto de vista material, ao Direito Administrativo Sancionador. Esta conclusão deriva do status constitucional do domínio punitivo, que visa a responsabilidade autônoma e geral de quaisquer agentes públicos (e terceiros pessoas físicas e jurídicas responsáveis) pela prática dos ilícitos tipificados na legislação de regência,28 tratada como tutela constitucional da Administração Pública no contexto da Organização do Estado, na Constituição Federal” (OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; GROTTI, Dinorá Adelaide. Int. Públ. – IP, Belo Horizonte, ano 22, n. 120, p. 83-126, mar./abr. 2020). Sem grifos no original.
“(…) 1. A Lei 8.429/1992 deixou de delimitar o ato ímprobo, o que pode realmente levar a Administração a punir indiscriminadamente os atos apenas ilegais praticados por Agentes Públicos como se improbidade fossem, alterando a essência da lei. Sobressai a importância do julgador em aferir a justa causa das ações de improbidade administrativa. 2. Efetivamente, as Ações Civis Públicas de Improbidade Administrativa, por possuírem o peculiar caráter sancionador estatal, assemelham-se às ações penais e exigem, dessa maneira, um quarto elemento para o preenchimento das condições da ação – e consequente viabilidade da pretensão do autor: a justa causa, correspondente a um lastro mínimo de provas que comprovem materialidade e indícios de autoria do recorrente (…)” (STJ, AgInt no AREsp 1148753/DF, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 01/12/2020, DJe 09/12/2020). Sem grifos no original.
Reexame necessário e recurso voluntário. Mandado de segurança. Infração de trânsito. Aplicação. Poder-dever. Decadência. Processo administrativo. Interrupção. Direito administrativo sancionador. Direito penal. Proximidade. Garantias. Retroatividade da lei mais benéfica. 1. A possibilidade da administração sancionar o particular por infração cometida à legislação de trânsito deve observar o prazo de cinco anos a contar da data em que praticado o ato, sendo o transcurso temporal interrompido pela instauração do processo administrativo que deve preceder o ato sancionatório. 2. A despeito da divergência existente, vem prevalecendo na doutrina e na jurisprudência a posição de que o grau de proximidade existente entre o direito administrativo sancionador e o direito penal autoriza seja estendida àquele todas as garantias inerentes a este último, dentre as quais a retroatividade da lei mais benigna prevista no art. 5º, XL, da Constituição da República. (TJ-MG – AC: 10024121280424002 MG, Relator: Marcelo Rodrigues, Data de Julgamento: 04/08/2015, Data de Publicação: 11/08/2015). Sem grifos no original.
O legislador ordinário, seguindo a orientação da jurisprudência, positivou essa característica na Lei n. 8.429/1992, definindo a Ação de Improbidade Administrativa nos seguintes termos:
Art. 17-D. A ação por improbidade administrativa é repressiva, de caráter sancionatório, destinada à aplicação de sanções de caráter pessoal previstas nesta Lei, e não constitui ação civil, vedado seu ajuizamento para o controle de legalidade de políticas públicas e para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. Sem grifos no original.
Devido a esse caráter, os direitos e garantias constitucionais individuais devem incidir diretamente na relação jurídico-administrativa sancionadora. Dentre os principais destaca-se a prescritibilidade e a retroatividade da lei mais benigna.
A propósito, as duas Turmas do Superior Tribunal de Justiça possuem precedentes no sentido de que o art. 5º, XL, da Constituição Federal de 1998, merece aplicação ampla, alcançando também a seara sancionadora:
(…) O processo administrativo disciplinar é uma espécie de direito sancionador. Por essa razão, a Primeira Turma do STJ declarou que o princípio da retroatividade mais benéfica deve ser aplicado também no âmbito dos processos administrativos disciplinares. (STJ – AgInt no RMS: 65486 RO 2021/0012771-8, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 17/08/2021, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/08/2021). Sem grifos no original.
“(…) O tema insere-se no âmbito do direito administrativo sancionador e, segundo doutrina e jurisprudência, em razão de sua proximidade com o direito penal, a ele se estende a norma do art. 5º, XVIII, da Constituição da República, qual seja, a retroatividade da lei mais benéfica” (STJ – REsp: 1353274 DF 2012/0132889-0, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 23/02/2021, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/03/2021). Sem grifos no original.
Esse princípio constitucional deve reger e orientar toda e qualquer expressão do poder estatal sancionador. Portanto, a Lei nº. 8.249/1992 não pode ter outro fundamento axiológico senão os princípios que irradiam da Constituição Federal.
Outras amostras no direito interno militam em favor da retroatividade, ainda que a sanção pretendida não tenha caráter criminal. É o que se nota, por exemplo, no art. 106 do Código Tributário Nacional, que admite a aplicação da lei ou fato pretérito quando for cominada penalidade menor severa que aquela prevista na legislação vigente ao tempo da prática do ato (inciso II, “c”).
A partir dessa breve digressão sobre a natureza da ação de improbidade administrativa, é possível concluir que a Constituição Federal de 1988, apesar de tratar da retroatividade da “lei penal”, a interpretação que lhe confere a máxima efetividade é ampliativa, tomando como norma geral de direito punitivo, aplicável, portanto, a sanções de qualquer natureza.
Consoante outro precedente do Superior Tribunal de Justiça, “o art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage no caso de sanções menos graves, como a administrativa. Precedente”. (AgInt no REsp 1602122/RS, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/08/2018, DJe 14/08/2018).
Na esteira da lógica adotada pelo STJ, qualquer outra norma de caráter punitivo ou sancionador, desde que benéfica ao administrado, também deve retroagir. Portanto, o que se mostra relevante é o efeito irradiante do princípio da retroatividade da norma punitiva mais benéfica que, para além da esfera penal, adentra a todas as situações em que há o exercício do poder punitivo do Estado.
Assim como a lei penal, a Lei de Improbidade Administrativa também prevê em seu corpo estrutural um coletivo de sanções e penalidades, não sendo razoável que o princípio constitucional da retroatividade da lei mais benéfica não seja a ela aplicado.
Outra normativa que favorece a aplicação do art. 5º, XL, da Constituição Federal de 1998 para além do processo penal pode ser extraída no art. 9º da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), promulgada pelo Decreto 678, de 06 de novembro de 1992. De acordo com o referido artigo, “ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que forem cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinquente será por isso beneficiado”.
O art. 9º da CADH, ao replicar o princípio da retroatividade benigna, não se restringiu ao processo penal. PIOVESAN explica que a redação desse dispositivo é genérica ao referenciar que os delitos e as penas serão determinados por lei ou pelo direito aplicável (Comentários à CADH, Rio de Janeiro, Forense, 2019, p. 164). Dessa forma, considerando a proximidade entre as sanções previstas na lei de improbidade e aquelas disciplinadas na legislação penal, as novas leis que limitem a atividade repressora do Estado devem retroagir aos casos ainda em andamento, ainda que estes não veiculam uma pretensão propriamente punitiva.
Não se pode perder de vista que desde 2006, a jurisprudência da Corte Constitucional (STF), ao julgar um recurso extraordinário envolvendo a prisão civil decorrente de contrato de alienação fiduciária, rendeu um status normativo superior aos tratados de direitos humanos, estando a CADH incluída nesse rol. Nesse novo contexto, eles passaram a ter hierarquia supralegal, ou seja, superiores às leis, mas inferiores à Constituição, devendo ser necessariamente observados por todos os agentes estatais.
Com efeito, ostentando a referida Convenção status de norma supralegal, sua dicção, alinhada às perspectivas do direito nacional sancionador, ao entendimento da jurisprudência nacional e às novas disposições trazidas pela Lei n. 14.230, de 25 de outubro de 2021, que entrou integralmente em vigor em 26 de outubro de 2021, permitem a aplicação RETROATIVA da nova disciplina sobre a prescrição.
Art. 23. A ação para a aplicação das sanções previstas nesta Lei prescreve em 8 (oito) anos, contados a partir da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência.
1º A instauração de inquérito civil ou de processo administrativo para apuração dos ilícitos referidos nesta Lei suspende o curso do prazo prescricional por, no máximo, 180 (cento e oitenta) dias corridos, recomeçando a correr após a sua conclusãoou, caso não concluído o processo, esgotado o prazo de suspensão.
2º O inquérito civil para apuração do ato de improbidade será concluído no prazo de 365 (trezentos e sessenta e cinco) dias corridos, prorrogável uma única vez por igual período, mediante ato fundamentado submetido à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica.
3º Encerrado o prazo previsto no § 2º deste artigo, a ação deverá ser proposta no prazo de 30 (trinta) dias, se não for caso de arquivamento do inquérito civil.
4º O prazo da prescrição referido no caputdeste artigo interrompe-se:
I – pelo ajuizamento da ação de improbidade administrativa;
II – pela publicação da sentença condenatória;
III – pela publicação de decisão ou acórdão de Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal que confirma sentença condenatória ou que reforma sentença de improcedência;
IV – pela publicação de decisão ou acórdão do Superior Tribunal de Justiça que confirma acórdão condenatório ou que reforma acórdão de improcedência;
V – pela publicação de decisão ou acórdão do Supremo Tribunal Federal que confirma acórdão condenatório ou que reforma acórdão de improcedência.
5º Interrompida a prescrição, o prazo recomeça a correr do dia da interrupção, pela metade do prazo previsto no caput deste artigo.
6º A suspensão e a interrupção da prescrição produzem efeitos relativamente a todos os que concorreram para a prática do ato de improbidade.
7º Nos atos de improbidade conexos que sejam objeto do mesmo processo, a suspensão e a interrupção relativas a qualquer deles estendem-se aos demais.
8º O juiz ou o tribunal, depois de ouvido o Ministério Público, deverá, de ofício ou a requerimento da parte interessada, reconhecer a prescrição intercorrente da pretensão sancionadora e decretá-la de imediato, caso, entre os marcos interruptivos referidos no § 4º, transcorra o prazo previsto no § 5º deste artigo.
Logo no caput do art. 23 é possível notar que além da alteração quanto ao prazo prescricional – agora de 8 anos –, a nova legislação disciplinou expressamente o termo inicial da prescrição, cujo início ocorre a partir da prática do suposto ato improbo. Ou seja, não há mais diferenciação quanto ao tipo de sujeito que praticou o ato de improbidade.
Essa novidade deve retroagir, pois, como visto, em direito sancionador a retroatividade da lei mais benigna deve ser aplicada. Igualmente, as disposições sobre a prescrição intercorrente devem incidir em processos novos e antigos, observadas as hipóteses de interrupção. Aqui vale registrar que o STJ, especialmente por sua 2ª Turma, não admitia a aplicação da prescrição intercorrente às Ações de Improbidade, ainda que a ação, ajuizada no prazo, tenha demorado mais de cinco anos para ser julgada (STJ, 2ª Turma, REsp 1289993/RO, Rel. Min. Eliana Calmon, julgado em 19/09/2013).
É certo que muitas discussões serão travadas nos tribunais superiores sobre o tema, especialmente porque a legislação não definiu se a interrupção, em especial, pode ocorrer mais de uma vez, nem se ela se aplica imediatamente aos processos em curso ou se dependerá da verificação de inércia do Promotor de Justiça ou do Poder Judiciário. Por isso é extremamente relevante que nós, advogados, como primeiros juízes da causa, levemos os casos às instâncias superiores, com teses bem fundamentadas e por intermédio de todos os recursos necessários.
Elpídio Donizetti