O direito à indenização pela perda de uma chance vem sendo admitido paulatinamente pela jurisprudência brasileira a partir da ideia de plausibilidade. Eventual indenização com base nessa teoria tem sido aplicada em razão da existência de uma oportunidade concreta que não aconteceu, por fato alheio à vontade da vítima e por culpa do ofensor.
De acordo com Elpídio Donizetti, a referida teoria
“(…)está caracterizada quando a pessoa vê frustrada uma expectativa, uma oportunidade futura, que dentro da lógica do razoável ocorreria se as coisas seguissem o seu curso normal. Embora alguns tribunais considerem a ‘perda de uma chance’ como modalidade de dano moral (nesse sentido: TJSP, Apelação n. 1000832-56.2015.8.26.0045), prevalece o entendimento no sentido de que ela corresponde a uma quarta categoria de dano, dentro do tema da responsabilidade civil, ao lado dos danos materiais, morais e estéticos”[1].
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça estabelece que a teoria da perda de uma chance tem duplo viés: o primeiro está ligado ao dever de indenizar em decorrência da frustração da expectativa de se obter uma vantagem ou um ganho futuro, desde que séria e real a possibilidade de êxito. Esse viés é denominado de chance clássica. O segundo viés está amparando na pretensão ressarcitória pela conduta omissiva que, se praticada a contento, poderia evitar o prejuízo suportado pela vítima(chance atípica)(REsp 1.677.083/SP, DJe 20/11/2017).
Pensemos, então, na seguinte hipótese: Caio cresce sem a presença do pai. De acordo com a genitora Marília, o pai de Caio teria falecido antes do nascimento. Ocorre que, chegando na fase adulta, Caio descobre que seu pai, Antônio, está vivo e que a mãe lhe escondeu propositalmente esse fato, assim como não contou sobre a gravidez a Antônio.Nessa situação seria possível, aplicando a teoria da perda de uma chance, a fixação de indenização em favor de Antônio, a ser paga por Marília?
A resposta é positiva. Caio poderia ter convivido com o pai, ainda que os genitores não tivessem um bom relacionamento. A expectativa de afeto e de construção de uma relação paterno-filial foi frustrada, sem justificativa plausível.Se a mãe de Caio tivesse, por exemplo, realizado um aborto sem a informação ao genitor, frustrando a concretização da paternidade, a indenização seria, em tese, igualmente viável.
A novela “Pantanal”, da Rede Globo de Televisão, ilustra situação semelhante.Joventino não conviveu com o pai, pois sua genitora, assim como os familiares maternos, fizeram-no crer que o pai havia falecido. O pai, por sua vez, sem deixar de prestar alimentos ao filho, mantinha a crença de que Joventino não queria a sua companhia. Ao subtrair de Leôncio – pai de Joventivo – a oportunidade concreta de conviver com o filho, que acreditava no falecimento precoce do pai, a genitora cometeu ato ofensivo à personalidade dos envolvidos, promovendo uma precoce ruptura da relação paternal e, consequentemente, inviabilizando a possibilidade de formação de laços importantes, especialmente do ponto de vista emocional. Embora a novela retrate o reencontro tardio entre pai e filho, não é possível a recomposição exata das situações subjetivas já danificadas pelo distanciamento, notadamente quando este ocorreu por longos anos. Há claramente um dano, tal como ocorre quando nos deparamos com o inverso: o abandono afetivo, decorrente da omissão do genitor no dever de cuidar da prole. Pode-se falar, ainda, em indenização pelo comportamento desleal da genitora e da sua postura violadora da boa-fé.
Na doutrina há vozes importantes que admitem a incidência dos instrumentos da responsabilidade civil, inclusive no que tange à teoria da perda de uma chance, ao Direito das Famílias. Cristiano Chaves, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Neto citamcomo exemplo, além daquele relacionado à perda da oportunidade de uma pessoa desenvolver-se pai, a hipótese na qual o alimentante é vítima de um ato ilícito que impossibilita o cumprimento da obrigação[2], privando o alimentado de amparo material. Nesse caso, o terceiro que cometeu o ato ilícito frustrou a expectativa de sustento, guarda e educação da vítima, que pode não ter outra fonte para esse cuidado.
A propósito, o Superior Tribunal de Justiça, em antigo precedente, analisou situação assemelhada. Uma mulher foi vítima fatal de erro médico, circunstância que inviabilizou a sua posse em concurso público para o qual já havia sido aprovada. O filho ajuizou ação indenizatória em face do causador do dano, afirmando que, além de estar impossibilitado de conviver com a genitora, perdeu a chance de receber parcela de seus rendimentos. De acordo com a decisão “(…) no caso concreto, a chance de que a vítima destinaria ao filho menor parcela de seus ganhos é bastante razoável, e isso é suficiente para gerar a obrigação de reparar a perda. Nesse contexto, não merce acolhida a tese de que o filho possuía apenas expectativa de direito a receber percentual dos rendimentos líquidos da mãe” (AgRg no Ag: 1222132/RSDJ 15/12/2009).
Se o dano afeta o sentido espiritual da vida, violando um projeto inicial – que pode ser o projeto de paternidade ou qualquer outro, igualmente relevante –, a reparação torna-se, em tese, viável, sem que se cogite qualquer conotação patrimonial. A realização pessoal de um ser humano, vinculada a sua dignidade, não deve se limitar a aspectos meramente econômicos, podendo abranger elementos existenciais.
A prática de alienação parental é outro indicativo da possibilidade de indenização a partir da aplicação da teoria da perda de uma chance. Em casos assim, as atitudes prejudiciais de um dos genitores são capazes de inviabilizar o prosseguimento do convívio familiar ou mesmo o seu surgimento, gerando um dever de indenizar.
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais, ao julgar o recurso de Apelação n. 10518150169408/002 (DJE de 14/11/2017), apreciou, ainda que superficialmente, a correlação entre a alienação e a teoria da perda de uma chance. No caso concreto, restou demonstrado o cerceamento da oportunidade de o requerente conviver com o filho, a partir da regulamentação judicial das visitas. Ocorre que o requerente tinha meios de fazer prevalecer a ordem judicial (pela via da execução, por exemplo), mas se manteve inerte. Ou seja, fixado o regime de visitas, este foi inviabilizado pela genitora, mas o pai, que poderia ter requerido o cumprimento da decisão, inclusive com a aplicação de medidas coercitivas em face da genitora, não adotou as providências cabíveis. Como não houve iniciativa do requerente, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu que não havia nexo de causalidade entre o ato prejudicial praticado pela genitora e os prejuízos alegadospelo requerente. A contrario sensu, se tivesse havido efetiva resistência do genitor e acionamento do Poder Judiciário, a teoria da perda de uma chance poderia ter sido aplicada. Imaginemos, por exemplo, que além de violar o dever de convivência, a genitora tivesse levado o filho para outro Estado, sem que até mesmo o aparato judiciário conseguisse localizar a criança. Ou seja, os esforços do genitor poderiam ser considerados um robusto indício de que, se a mãe não tivesse inviabilizado o processo de convivência, teria havido efetiva probabilidade de desenvolvimento dos laços afetivos entre pai e filho.O caso concreto e as provas produzidas é que irão indicar se há ou não viabilidade de aplicação da teoria da perda de uma chance às relações familiares.
Devemos ter em mente a premissa de que a intervenção do Estado em casos assim é excepcional. Nem sempre a prática de um ato dentro de uma relação familiar será suficiente para gerar um dano moral indenizável. Pensemos em um adultério ou no término de um relacionamento. Os artigos 186 e 187 do Código Civil admitem que a indenização seja fixada independentemente da prática de ato ilícito, surgindo, em tese, a possibilidade de reparação até mesmo nessas hipóteses. Ocorre que, em casos assim, é necessário perquirir se houve violação a algum dever relacionado, por exemplo, ao casamento, e que a violação desse dever, por si só, gerou a ocorrência de um ato ilícito. Cristiano Chaves, citando Luciano de Farias, explica que “(…) por estar pautada em sentimentos, uma relação pode vir a sofrer as conseqüências das oscilações sentimentais, típicas da sociedade humana. Qualquer pessoa que inicie um relacionamento deve estar ciente de que os sentimentos podem não ser correspondidos, existindo vários riscos de decepções e frustrações. São riscos inerentes ao namoro, ao noivado, ao casamento (…)”[3]. Dessa forma, o simples adultério ou o término de um noivado não permite a incidência da teoria da perda de uma chance.
Para exemplificar: em 05/06/2019, a 4ª Turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal julgou o recurso de apelação n. 0005822-61.2015.8.07.0005, interposto por uma noiva em razão do indeferimento do pedido de indenização proposto em face do ex-noivo. Segundo a apelante, teria havido o rompimento da relação por suposta descoberta de uma traição.O Tribunal entendeu que a ruptura em si do noivado, em que pese os desgastes emocionais, não traduz ato ilícito passível de gerar responsabilidade civil, porquanto ninguém pode ser compelido a se casar.“O noivo que, por razões tangíveis ou intangíveis, resolve pôr fim ao relacionamento, não incorre em ilicitude porque não se colhe da ordem jurídica vigente nenhum, absolutamente nenhum, dever ou obrigação de prosseguir com o noivado, contrair núpcias ou, ainda depois, permanecer casado. E sem o timbre da iliceidade o ato humano é indiferente à temática da responsabilidade civil”. E concluiu a Turma: “A opção pelo desfazimento do noivado insere-se no plano indevassável da liberdade pessoal e por isso não traduz ato ilícito, valendo consignar que a vida em sociedade é governada pelo princípio da legalidade, segundo o qual ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’, consoante preceitua o artigo 5º, inciso II, da Lei Maior”.Admitiu-se, contudo, a indenização por danos MATERIAIS do rompimento do noivado, às vésperas do casamento.
Os motivos para a ruptura de uma relação podem ser vários, não cabendo ao Estado investigá-los um a um. A liberdade que cada ser humano tem de escolher o(a) seu parceiro(a) (ou mesmo de não ter parceiro algum) deve ser preservada. Além disso, aplicar indistintamente a esses casos a teoria da perda de uma chance seria o mesmo que admitir que o casamento é uma instituição capaz de gerar, em toda e qualquer hipótese, uma vantagem futura.
A título de conclusão, podemos definir que embora a teoria da perda de uma chance tenha espaço no Direito das Famílias, ela não pode ser acolhida sem moderações. Além da necessária presença dos pressupostos da responsabilidade civil – dano, culpa e nexo de causalidade – é imprescindível que o ofendido comprove a perda da vantagem sofrida, ou seja, a chance séria, efetiva e real de um êxito futuro. Danos meramente hipotéticos, sem razoáveis chances de proporcionar à vítima algum tipo de vantagem, inviabiliza o arbitramento de indenização.
Tatiane Donizetti
[1]Disponível em:https://www.elpidiodonizetti.com/perda-de-uma-chance-e-lucros-cessantes-semelhancas-diferencas-cumulacao-e-o-posicionamento-da-jurisprudencia/.
[2]Manual de Direito Civil. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1214.
[3]Fonte: https://ibdfam.org.br/assets/upload/anais/182.pdf
Elpídio Donizetti Sociedade de Advogados
Facebook: https://www.facebook.com/elpidiodonizetti
Instagram: https://www.instagram.com/elpidiodonizetti
LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/elp%C3%ADdio-donizetti-advogados-4a124a35/